HISTÓRIAS DE ONTEM

OBJETIVO DO BLOG: ATRAVÉS DA PUBLICAÇÃO DE TEXTOS E IMAGENS, MOSTRAR UM POUCO DA MINHA TRAJETÓRIA

2 - ORAÇÃO AO PÁSSARO


Este texto foi escrito por Adalice Araújo em 1994, por ocasião da Exposição retrospectica realizada pela Fundação Cultural de Curitiba, na época dirigida por Geraldo Pougy, e tendo Orlando Azevedo como diretor de Artes Visuais.
ROGÉRIO DIAS
ORAÇÃO AO PÁSSARO
                 Ao organizar a presente Mostra Retrospectiva de Rogério Dias, a Fundação Cultural de Curitiba reconhece em sua obra uma das mais autênticas manifestações da Arte Paranaense Contemporânea. De fato, com Rogério Dias vemos o Paranismo passado a limpo - decodificado no traço, nas cores e no volume – longe dos modelos da arte européia.
                 Inicio bonito em Jacarezinho, em contato direto com a natureza e com direito a longas espiadas no mundo da cor e do volume, santificadas na Catedral de Jacarezinho; numa idade onde não há separação do visual real com o imaginário. Em seguida mutação de idade, de cidade, de ambiente. Agitação estudantil, trauma do AI5. Para quem vem do interior, o inevitável massacre dos valores urbanos, mas o segredo de ter o eterno referencial da convivência com a natureza. 
                  Depois das incursões pelas artes cênicas; das experiências em publicidade; das grandes e marcantes amizades; dos encontros e desencontros; das múltiplas experiências lúdicas, vivenciais, sarristas, multidimensionais da “caxa de bixo” finalmente a poesia visual. Nas figurações de pássaros, ícones da liberdade – que nascem da espontaneidade do traço e das montagens da madeira – presença da infância da América Pré Colombiana, em seu estado mais puro, antes da posse do colonizador/invasor. A volta à intuição, ao símbolo, ao arquétipo, seja através da reciclagem da sucata, seja através da forma descontraída e alegre com que se serve dos materiais tradicionais: o desenho, a pintura e a foto. Rogério Dias tudo nos comunica através dos pássaros. Metamorfoseia-os em escrita ideográfica, em anotação musical sobre o pentagrama, memória, consciência e enigma do universo. 

DE OBSERVADOR A MESTRE
                       Nascido em Jacarezinho (PR), no dia 19 de junho de 45, Rogério José de Moura e Dias é filho de José de Alencar Alvarenga Dias e Maria Mercedes de Moura e Dias; ambos mineiros, que faziam questão de manter em casa a antiga tradição do amplo quintal, onde não podia faltar o viveiro de pássaros. Foi neste ambiente, permanentemente em contato com a natureza, que Rogério Dias cresceu. Talento precoce começa a desenhar na primeira infância, não só mediante estímulo da natureza local, como também da mãe pianista, e o pai escriturário de polícia – poeta das palavras e das gaiolas feitas para não prenderem passarinhos - e, também do irmão José Waldetaro, 10 anos mais velho, pintor e colaborador de Sigaud na pintura dos murais da Catedral de Jacarezinho.

                Um belo dia os pássaros são tirados do viveiro que é transformado em ateliê de seu irmão. Para ele era uma alegria poder entrar naquela caixa de luzes e cores – ainda impregnada da lembrança dos pássaros – e limpar os pincéis do seu irmão, para ganhar restos de tinta e outros materiais para pintar. Apesar de gostar de olhar os murais de Sigaud e as esculturas de Blasco y Vaquet, em plena época de sua execução, considera seu primeiro mestre Renato Quintanilha Braga, o seu médico pediatra; que apesar de ser formado em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, era graduado em pintura na Escola de Belas Artes de Salvador. Nos finais de semana fazia parte do grupo que o acompanhava para vê-lo pintar. Ao fazer um recorte e colagem com papéis para explicar como se construía uma paisagem, dele recebe a grande e, talvez, única lição de pintura de sua vida.
      Paisagem de Jacarezinho – Aula de pintura com Dr. Renato Quintanilha

                     Em sua cidade natal Rogério Dias freqüenta o Colégio Cristo Rey. Devido a problemas de ativismo na política estudantil, durante um ano reside com suas tias em Alfenas, Minas Gerais, onde descobre as artes cênicas. Em seu regresso a Jacarezinho, de 61 a 64, participa do CAT (Conjunto de Amadores de Teatro), não só na qualidade de ator como de Cenógrafo. Nessa época são de grande importância não só o convívio com desenhistas como Hélio de Barros; como também a leitura de livros da coleção de Sigaud, doados ao seu irmão, a exemplo de uma obra de Salvador Dali, através da qual descobre as livres associações que seria de extrema importância na sua futura produção de artes visuais. Também mantém-se informado sobre arte internacional através de notícias contidas em revistas como “Life” e “Time” a que tinha acesso; o que explica as suas primeiras experiências com Arte Povera, feitas quando ainda residia em Jacarezinho. Entre idas e vindas a Curitiba, consegue participar, em 1965, da parte final de uma oficina de gravura do curso de verão, orientada por Fernando Calderari que lhe empresta três placas de metal, com as quais faz suas primeiras gravuras. No término do curso, ao procurar Fernando Calderari para pagar as chapas, este o aconselha a enviar as gravuras de sua autoria para o 1º Salão de Artes Plásticas/Cidade de Curitiba, promovido pela Prefeitura Municipal. Para sua surpresa, suas obras são selecionadas; o que seria sem dúvida determinante para sua futura definição profissional.

  Primeira gravura feita por Rogério – 1965
                   Como continuasse seu ativismo na política estudantil, neste mesmo ano tranfere-se para Curitiba; sendo que nos três primeiros meses refugia-se em casa de sua irmã. Vivia-se a época sombria de repressão da ditadura militar, sendo que a experiência de ficar esse longo tempo sem poder sair de casa, foi bastante traumática para ele.
                 Graças à ajuda de seu pai, Rogério Dias consegue o seu primeiro emprego, em Curitiba, no Centro de Recursos Audiovisuais de Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Paraná. É aí que conhece intelectuais como Walmor Marcelino e artistas como Thomaz Waltersteiner, graças a quem incursiona pelo Centro de Gravura liderado por Nilo Previdi; cuja aura de rebeldia correspondia aos seus sonhos de adolescente do Bateau-Lavoir e outros ateliers de Montmartre, em1966, abre o “Pop Estúdio de Arte”, uma pequena agência que trabalhava com design gráfico, fotografias e stands. A Partir de 1969, com Francisco Kava Sobrinho – a quem considerava um verdadeiro irmão -, Jesus Santoro e João Urban colabora na “Prisma”, entre muitas outras agências como: “Foco”, Standard Propaganda” e “Equipe Propaganda”. Até 70, incursiona pelas artes cênicas não só participando do performático “Guarda Chuva”, do “XPTO” e de espetáculos como “A Semana” sob liderança de José Ari Para-Raio – de quem passaria a ser constante colaborador -; como também na qualidade de design gráfico e cenógrafo das peças dirigidas por Manoel Carlos Karan, também autor teatral. Ainda, em 70, participa como ator principal, nas filmagens de “O Diabo tem mil Chifres”, feitas no Paraná e Santa Catarina e dirigido por Penna Filho.
                Após seu casamento com Maria Cristina Camargo, em 71, e do nascimento da sua primeira filha Regina de Camargo Dias, em 73, define-se antes pelo design gráfico e depois pelas artes plásticas. De 75 a 79, trabalha na Grafipar tendo sido diretor de arte da revista Passarola, distribuída pela Varig. 
      Algumas capas da Revista Passarola/Varig – Dirigida por Rogério e ilustradas por diversos artistas

                           Neste meio tempo colabora de 76 a 77, com Reynaldo Jardim no “Anexo” do “Diário do Paraná” e no “Pólo Cultural”. Já com Rettamozzo e Solda no “Informativo de Arte”, editado em 78 pela Galeria Acaiaca de propriedade do marchand Jorge Carlos Sade, que se destaca por suas irreverentes críticas semióticas, sua linguagem independente e seu inovador design gráfico. Em 80, casado com Verônica Toledo, tem seu segundo filho, Guilherme Silveira Dias.
                          Em 81 ambos executam para a “Múltipla”, os bonecos da Campanha “Papai Noel Cor de Rosa”, criação de Paulo Vítola. Foi tal o sucesso da campanha – inclusive premiada – que Rogério Dias é contratado para ser diretor de arte da “Múltipla”. Em 83 afasta-se da empresa e, durante um mês, permanece em Brasília, colaborando no “Correio Brasiliense”.
Papai Noel Cor de Rosa
                   Em seu retorno a Curitiba intensifica suas pesquisas na área da pintura. Embora, em 84, tenha colaborado com Cláudio Seto no “Correio de Notícias” e, em 86, retorne por breve período a Brasília, onde trabalha com Reynaldo Jardim na Fundação Cultural do Distrito Federal. Nos últimos anos Rogério Dias deixa o design gráfico para dedicar-se, integralmente, às artes plásticas. 
                  Apesar de seu grau de informação e da sua constante procura por atualização, Rogério Dias pode ser considerado um autodidata. Contudo pela trajetória de seu trabalho pode-se perceber que ele construiu sozinho o seu caminho; sendo que o nível que conseguiu atingir corresponde a um verdadeiro pós-doutorado em artes visuais. Trabalhos como o retrato de sua sobrinha (67) confirmam que ao chegar a Curitiba (65), Rogério Dias já era um artista que dominava o “métier”. 
Retrato da sobrinha (1967)
                        Embora, seja lamentável que não tenha tido um reconhecimento imediato, não há dúvida que o seu convívio com profissionais de alto nível como Francisco Kava Sobrinho, sua trajetória como design gráfico, e suas livres experiências nos anos loucos do “Caxa de Bixo”, foram determinantes para o desenvolvimento de uma linguagem pessoal e, ao papel pioneiro que ocupa na Pattern Art, a nível nacional e internacional.
                      Apesar de ter sido premiado no 38º Salão Paranaense (81) sua participação em salões diminui nos últimos anos; o que é, aliás, normal em nosso meio. Todavia, suas exposições individuais intensificam-se, cabendo destacar entre elas, as que realizam em 85, na Galeria de Arte Banestado; em 87, na Acaiaca; em 89, na Casa Romário Martins; em 92, na Galeria de Arte do C.C.B.E.U. Se é verdade que suas pesquisas nas áreas de escultura e pintura coexistem cronologicamente, sendo que esta última intensifica-se a partir de 85, não há dúvida que a tendência à monumentalidade que se impõe ultimamente nos pássaros, indica que sua próxima fase será talvez um retorno à escultura
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ESCULTURA E OBJETOS
                                Entre as mais marcantes experiências visuais já vividas por Rogério Dias, sobressai-se, na sua infância, a descoberta que faz ao espiar o escultor espanhol Blasco Y Vaquet – autor das esculturas da Catedral de Jacarezinho – quando o surpreende trabalhando com sobreposição de blocos de madeira. Esta desconstrução/construção constitui para ele, em uma inesquecível lição de vida estética. Ainda em sua cidade natal, Rogério Dias começa a fazer modelagens, reproduzindo em barro e depois na madeira, as figuras dos murais de Sigaud. Por falta de forno adequado, ele queimava essas peças de barro no fogão da cozinha de sua casa. As mesmas eram tão interessantes que o seu irmão costumava levá-las para mostrar a Sigaud. Em 58, (com apenas 13 anos) faz as suas primeiras incursões pela Arte Povera. Com materiais descartáveis – como compensados de embalagens – constrói objetos sobre os quais aplicava plástico derretido, pintava e lixava. Em 67, já morando em Curitiba, causa-lhe forte impacto uma escultura de autoria de Abraão Assad, cujo tema é um bando de pássaros. Mais tarde, descobre que eles são um elemento muito importante para a cultura muçulmana, havendo inclusive figuras de pássaros desenhadas na escrita árabe. Por volta de 69, ao descer ao litoral, recolhe, na praia várias sobras de madeira de uma fábrica de lápis, trazidas pelo mar; bem como galhos de plantas nativas. Inicialmente aproveita este material para construir – mediante encaixe e superposição – espécie de totens. Em realidade carrancas sintéticas que – na sua tosca simplicidade – isolam a força expressiva da cabeça humana, remetendo às esculturas da Ilha de Páscoa. Aos poucos, afloram as imagens dos pássaros da infância, reavivados pela descoberta da escultura de Abraão Assad. De início começa a fazer mediante junção de madeiras amarradas – rústicos objetos com base, sobre os quais sobrepunha pássaros, na parte central. Pouco depois, impõem-se figurações de pássaros isolados – sem necessidade da base – construídos mediante junção de madeiras 



                                                                                                                                   

Esculturas a partir de sucatas de madeira e materiais naturais
diversas como caixeta, sementes de brejaúva e cortiças. Tira partido não só da diversidade dos materiais como das suas texturas; assumindo a sua rusticidade. No decorrer do trabalho começam a surgir outros animais, entre os quais se sobressaem os caracóis. Mais do que descritivas as esculturas/animais de autoria de Rogério Dias contém sugestões que parecem brotar dos próprios materiais; que inclusive, definem as formas. Imensamente identificadas com a natureza, estas pequenas e sintéticas esculturas carregam em si a metáfora da terra; enrolando-se em caracóis, arredondando-se, ou, triangularizando-se em pássaros. 
Na linha dos “ready-mades” sobressai-se uma velha mala colocada pelo artista na Mostra Conjunta da Sala Miguel Bakun (82), para que os visitantes nela desenhassem, escrevessem as suas impressões e poemas. Enfim... Dentro de um processo de obra aberta interferissem e participassem como co-autores.
NOS QUADROS/MATÉRICOS: UMA VISÃO ANTROPOFÁGICA DO NOVO REALISMO
                            Em início dos anos setenta, Rogério Dias ganha de sua sogra retalhos de madeira, com os quais constrói molduras quadradas. Em seu verso estica tecidos estampados, cujas superfícies externas são trabalhadas com toque de cor, sobre as quais faz assemblages, colando tocos de madeira pintados e, por vezes amarrados com barbante. Dentro do mesmo espírito de aproveitamento de materiais do cotidiano, em sua visita a casa de Solda, transforma a tábua de carne da cozinha, em uma espécie de hilariante máscara. Nela abre um orifício para se olhar para fora, em torno do qual pinta um grande ovo – que ocupa a 
 parte central superior da composição – projetando sombra, como se fosse um monumento. O espaço 
bidimensional da superfície já é, aí, dividido em faixas horizontais nas cores amarelo/ocre e laranja que criam uma sensação espacial dinâmica. Como um personagem saído do desenho de humor, a parte inferior de um dos cantos lateral é ocupado por um emblemático pintinho representado frontalmente, inserido em uma forma circular. 
Pintura sobre madeira

COLAGENS: 1ª INDIVIDUAL NA GELERIA DO C.C.B.E.U.
                         Promovida pela galeria de arte do Centro Cultural Brasil Estados Unidos, a primeira exposição individual de Rogério Dias é lançada em 15 de setembro de 1977. A sugestão da mostra parte de Celso da Silva que, então, gerenciava aquele espaço. Na época, Rogério Dias serviu-se de embalagens (papel Kraft) de supermercado para realizar uma série de colagens monocromáticas, dotadas de grande força evocativa. Embora sugerindo, à primeira vista, vôos de pássaros, estas colagens representam, na realidade, fragmentos do corpo humano, oníricos e misteriosos; quase memórias de sensações e situações vividas ou sonhadas. Em uma espécie de instalação, expõe as embalagens vazias dos tubos de cola usadas para fazer as colagens e faz uma interferência no espaço da galeria utilizando papelão.

Colagem com papel Kraft - 1977

CAXA DE BIXO”: O TRIUNFO DO UDERGROUND CURITIBANO
Embora constituído por artistas já consagrados – por suas participações em salões e individuais – e que em sua maioria, já vinham trabalhando juntos na área do design gráfico e publicidade desde finais dos anos sessenta, o “Caxa de Bixo” só se apresenta como um grupo em inícios da década de oitenta. Com ar de festa, de armazém de bugigangas ou camarim de circo, captando o dia a dia erótico, político e místico, o “Caxa de Bixo” apresenta-se muito louco, muito lúdico, muito crítico e muito inventivo. Com sua irreverência fala-nos verdades profundas.


Serigrafia – 1981                                                                                                                        serigrafia com pintura - 1981 

                              Conscientiza-nos da nossa perda de identidade, da necessidade de não se fazer arte “como se compra whisky numa importadora”. Com duas aparições em 80 e 81, curte uma aura “pós pop” e “pós dadá”. Em sua primeira versão, lançada no dia 4 de março de 80, na oficina de criatividade, chamava-se ainda “Caixa de Bicho”, sendo seus fundadores: Rogério Dias, Rettamozzo, Gorda, e Ronald Simon. São suas características: “a originalidade”, “ a espirituosidade”, “o direito a arte como exercício de liberdade”. Já, em 81, amplia-se o seu sentido de deboche; sendo que seu manifesto diz:
... “Caxa de Bixo é um invento de Rogério Dias, uma máquina de reunir arte vagabunda de primeira linha subdes/envolvida...”. Assumindo o nome de “Caxa de Bixo”, a exposição acontece na sede da fundação Cultural de Curitiba, de 26 de março a 19 de abril de 81. Além da participação dos artistas fundadores, conta com: Paulo Leminski, Alice Ruiz, Reynaldo Jardim e Solda, entre outros. Rogério Dias propõe trabalhos reciclados, bichos/ecológicos, nus eróticos. Construídos com restos de materiais, os pássaros já se fazem presentes; bem como a utilização de tecidos como suporte para originais serigrafias. Dentro desta série, a proposta “Objeto não identificado” segue a trilha de Marcel Duchamp em seu irreverente questionamento à arte ocidental, através de um de seus mais sagrados ícones: a Monalisa de Leonardo Da Vinci. Estendendo sua crítica a alguns artistas da geração setenta em Curitiba – que se servem de textos de um rigoroso acabamento – Rogério Dias elege o detalhe do sorriso da Monalisa. Insere em um retângulo escrevendo cuidadosamente, o texto na vertical. Ao deslocar no espaço, retângulo e texto, cria uma dinâmica espacial que prende a atenção do expectador. Além de utilizar estes elementos, mediante impressão serigráfica sobre tecido, inscreve-os dentro da forma circular de um bastidor cortado nas laterais. Em seu conjunto a curiosa composição adapta-se à forma do retângulo longo da moldura.


NA FOTOGRAFIA A VALORIZAÇÃO DA NATUREZA
                                Ligado à fotografia desde a sua adolescência, em Jacarezinho, e tendo convivido ao longo de sua vida com excelentes fotógrafos como Francisco Kava Sobrinho, Orlando Azevedo e Márcio Santos, Rogério Dias comprova através das fotos apresentadas na mostra conjunta, realizada em 82, na Sala Miguel Bakun, ser, também ele, um fotógrafo sensível. Tendo como fonte inspiradora a natureza, não só a enfatiza através de closes, como chama a atenção para a ameaça à ecologia que os materiais industrializados representam. Assim ao enfocar pés calçados com tênis, ele dá uma conotação bastante diversa daquela enfatizada pela mídia; simbolizando não só o homem agindo sobre a natureza como agente destruidor; como também pisando em nossas raízes culturais, no círculo vicioso de um país colonizado, que endeusa os ícones do consumo do primeiro mundo. Explora com rara segurança a luz natural e as cores, com ênfase às explosões dos verdes. Na montagem compositiva utiliza painéis subdivididos em duas partes, sendo que uma valoriza o conjunto e a outra o detalhe, enfocando o despercebido. 


Mercado de Antonina - Foto Rogério Dias


UMA CONSTANTE PREOCUPAÇÃO COM A FIGURA HUMANA



              De maneira continua, desde o inicio de sua carreira, até hoje, Rogério Dias vem se dedicando ao estudo da figura humana. Dotado de prodigiosa memória visual – para a execução tanto de desenhos a nanquim, aguadas, aquarelas, como das pinturas a óleo e acrílica – prescinde do processo tradicional da pose, para dar preferência ao livre jogo compositivo. Com freqüência, enfoca o nu feminino como temática, deixando transparecer desde as primeiras aguadas, datadas de 1966, uma grande espontaneidade e síntese. Na década de setenta, utiliza técnica mista – misturando nanquim, guache e álcool – que se presta a visão instanteneista espontânea que, então, queria atingir. Paralelamente utiliza o grafismo puro em desenhos a nanquim, que nos surpreendem pela agilidade gráfica. Se, nas mulheres, há um misto de erotismo e ternura; nas irônicas figuras - como palhaços surpreendidos em closes – que expõe em 79, na 1ª Mostra do Desenho Brasileiro, sob o título “Fantasia Boso”, “fantasia Roto” e “Fantasia Real”, consegue captar um clima de psicótica alegria. 

                          Ainda, dentro da linha de nus femininos, destaca-se uma tela de 78, construída a partir de um grande pássaro, cujo corpo é delineado em azul. A figura da mulher sentada com braços para cima é monumental; rica em contrastes de cores e texturas. Nesta obra Rogério Dias pratica uma espécie de expressionismo/fantástico – mais em termos de uma visão imaginária excitável – que lembra vagamente Rouault. As manchas claras, rosas, verdes e terras contrastam com o fundo escuro. 

 
                                                                  Acrílica sobre Eucatex 1971 
                          Estudos de retratos também vêm merecendo a atenção de Rogério Dias quer no sentido tradicional do termo; quer como exercícios construtivos, tendo como tema a cabeça humana. Chama-nos a atenção o bom nível dos retratos pintados em 67, entre os quais o da sua sobrinha. Apesar da permanência dos contrastes entre zonas claras e escuras, este retrato difere da tradição andersista local, para aproximar-se de um universo que oscila entre Sigaud, Sargent e Gorky. Além da busca dos estados d’alma, valores do desenho confundem-se com aqueles da pintura. Não obstante a doçura do tema, a imagem é forte e bem delineada pelas pinceladas seguras. È dada ênfase á expressão psicológica, revelando um inconsciente temor pela vida, nascida em plena ditadura militar. O fundo abstrato é construído com manchas azuis escuras e verdes mais luminosos. Entre os mais representativos trabalhos deste gênero sobressai-se a figura de um rapaz de perfil fitando um pássaro, também de perfil, apoiado em sua mão. Tecendo uma comovida dramaturgia giottesca, ele pinta o personagem como uma São Francisco do séc. XX, dialogando com o pássaro, símbolo da natureza e dos anjos. A composição em tons sépias, mais claros e luminosos ao fundo, é dinamizada por uma faixa horizontal avermelhada, no alto e, principalmente pelo ângulo do braço; sendo que a mão em ascensão ergue-se para o alto como a torre de uma catedral gótica, na qual repousa um pássaro. 
Sucede-se em 72/73 estudos de cabeças, que revelam preocupação com a construção. Por volta de 85, faz dois retratos: de um rapaz com bigodes e de uma moça com chapéu. Apesar das suas instigantes expressões, as cores, tendentes aos pastéis e o brilho da improvisão, remetem a Mary Cassat. Ambos fluem de fundos muito claros que aludem às gravuras japonesas. Já nas aquarelas de 85/86, além a essencialidade construtiva; do instanteneísmo de visão; da associação de cabeças humanas com pássaros; Rogério Dias revela seus dotes de grande colorista. Com improvisações musicais de cor, ele associa azuis/violetas a amarelo-vermelhos.
NATUREZAS MORTAS E PAISAGENS
As naturezas mortas também constituem uma das temáticas abordadas por Rogério Dias, ao longo de sua carreira. Desenhista compulsivo, Rogério Dias não deixa de tender penetrar no segredo das flores, através de seus desenhos. Nos nanquins – associados à técnica mista, datados de 77 – em que trata flores isoladas, associadas ou não a vasos – ele revela intimidade com o tema e uma tal síntese e espontaneidade que nos faz lembrar “Ukiyo-é”.
Sem Título/1985                                                       Vaso com Flôres/1984                                                     Sem Título/1983
                               Embora tenha feito exercícios de pintura a óleo, utilizando, por exemplo, flores do divino (72); suas composições com naturezas mortas mais interessantes são aquelas em que busca um “clima” como o “Vaso com plantas” (84), em que predomina o vigor do tratamento e, principalmente, nas composições feitas a partir de 85. Nestas últimas associa o tema pássaros e padronagens, estabelecendo um diálogo secreto entre os elementos. As analogias de bules com pássaros, ao lado dos próprios pássaros, a divisão em registros – sendo que equilibra a dispersão dos elementos contidos em uma ou mais faixas, com a contenção em outras – criam um clima metafórico, repleto de uma poética pessoal. Embora seja raro, Rogério Dias tratar paisagem como temática isolada – a exemplo de uma pintura de 74, onde, se não fossem os elementos vegetais sintéticos presentes na faixa superior, seria uma composição abstrato/ geométrica – não há dúvida que essa está permanentemente subjacente na divisão espacial em faixas horizontais.

A CRIAÇÃO DE UMA PATTERN ART TROPICALISTA 
                      Por volta de 75, em pleno império do Minimalismo e da conceitualização da arte, um grupo de artistas de New York – entre os quais Zakanitch e Shapiro – reuniram-se para discutir preocupações estéticas comuns que, segundo John Perrault serviria de base para a Pattern Art. 
                      Cabe, contudo, a Mario Yrrissary a iniciativa de discutir a arte decorativa; sendo que por um neologismo ao termo (padrão) (patron) ele inventa o termo Pattern Art que alude à repetição de motivos. “Ornamentalidade” e “pictórico” constituem vocabulários desta nova corrente de arte que, reagindo contra a Minimal Art, em vez das estruturas asceticamente simples e do conceito, prefere a complexidade e a beleza da influência de papéis de parede e dos tecidos estampados. Por uma dessas raras intuições – que alguns querem explicar via inconsciente coletivo – Rogério Dias, mesmo sem viajar ao exterior, ocupa uma posição pioneira dentro da Pattern Art internacional, inventando a Pattern Tropicalista. 

                                                                          
Pintura sobre tecido – 1979

                                   Embora sua obra tenha algumas afinidades com Zakanitch como o uso da padronagem com motivos florais figurativos sobre um espaço abstrato, não há dúvida que sua referência não está nem nas flores de Monet e nem no japonesismo, mas sim nos frisos da Catedral de Jacarezinho pintados por Sigaud e na introdução de pássaros inseridos, na forma triangular arquétipa, que remete ao grafismo das pinturas corporais indígenas e à uma tendência construtiva intuitiva, que Olívio Tavares de Araujo define como “ semantemas plásticos de mineiridade” Ele explica que as mesmas não decorrem nem do projeto conceitual de um Albers, nem tão pouco do misticismo de Mondrian, mas sim do anseio por “formas claras permanentes e necessárias” das quais fala o poeta Drummond. Motivos florais com pássaros passam a ser tema constante em sua obra, a partir dos anos 80. Reafirmando a postura cubista de ruptura com a ilusão espacial tridimensional criada pela perspectiva renascentista, ele passa a trabalhar com a própria bidimensionalidade. Em sua permanente busca de experimentar novos materiais descartáveis, o processo nasce de um feliz acaso. A fim de decorar o quarto de Guilherme, seu segundo filho, que estava por nascer, faz colagens com sobras de tiras de brim da fábrica de confecções de sua irmã. Sobre o suporte dispões as faixas horizontais de tecido sobrepondo-as pela diversidade de cores; isto é, cada faixa de uma cor. Sobre elas não só aplica tinta – fazendo-as vibrar -, como pinta pássaros. Repudiando o cerebralismo de Braque e Picasso, em vez de intersecção de planos ele os representa em cada faixa, em posição contrária; por assim dizer, enquanto um vai, o outro vem. Obedecendo ao principio da “lei da frontalidade”, suas cabeças não obedecem a valores visuais de separação espacial, dando a sensação de estarem simultaneamente de perfil e de frente. Aos poucos, os tecidos estampados – já empregados em quadros métricos dos inícios dos anos 70 – fazem a sua entrada, abrindo o seu trabalho a espaços multisensoriais onde triunfam as cores, em sua dinâmica solar e, os sons da natureza. 

   
Acrílica sobre tecido/1981
                               Ele tanto faz padronagens suaves, dando a sensação de leveza como na obra “Pata de Vaca” premiada no 38º Salão Paranaense (1981), como as repinta com uma agilidade gestual inusitada fazendo com que triunfe a dinâmica das cores. Na mostra conjunta que, em 82, que realiza com o artista mineiro Marcos Coelho Benjamin, na Sala Miguel Bakun prossegue em seu processo de colagem de tecidos estampados coloridos sobre suporte. Longe de criticar o mundo tecnológico, serve-se da padronagem de tecidos industrializados como ponto de partida. Se, por um lado, acentua mediante toques de cor, a vibração da natureza – remetendo a grandes coloristas como Matisse e Kandinski -, por outro lado, ao recobrir certas composições com papel sulfurisé, cria a sensação de neblina, que evoca poeticamente as frias manhãs do inverno curitibano. Além da aceitação da padronagem e da divisão das composições em registros horizontais, Rogério Dias pinta sobre os tecidos – que agem como campo florido – pássaros sintéticos e gestuais, quase gaffitis que evocam os mistérios do vôo coletivo. Tal domínio gráfico explica-se não só através da intimidade com o tema, como também mediante constantes exercícios praticados mediante gestuais desenhos de pássaros feitos com nanquim, aguada e aquarela. Representados isolados, ou em bandos, predominam: a essência, o registro do repouso e do livre vôo. Observa-se que, gradativamente, no decorrer da década de oitenta, irá abandonar os tecidos prontos para inventar as suas próprias padronagens – que tanto podem invadir a tela toda, como estarem dispostas em faixas horizontais – ou, ainda, em gregas floridas entre as faixas/cores. Rogério Dias explica que as faixas/cores nascem da sua paixão pela cultura abstrata, especialmente pela inocência visual de Mark Rothko, levando-o a trabalhar manchas de cor, horizontalmente dispostas como se fossem relações espaciais sintéticas. Sobre elas, pode chegar a eliminar as padronagens florais para dispor apenas seus pássaros icônicos – comumente dispostos em bandos que vão e vem – ou, criar, ainda, efeitos de antigos afrescos. A partir de 88, as cores intensificam-; embora sua palheta seja muito pessoal, passa a tirar partido das complementares. Já em 89 e, principalmente nos anos noventa, é comum a metamorfose de flores em pássaros e vice versa. Mesmo em seu processo de criação, por vezes. Ele parte de faixas/cores abstratas sobre as quais aplica flores e pássaros e, outras vezes, ao contrário, parte de manchas gestuais de flores e pássaros. A sua elaboração é cuidadosa. 

Acrílica sobre tela – 1994                           Acrílica sobre tela -1994
Extremamente exigente Rogério Dias não admite repetir as mesmas padronagens e pássaros, o que leva a uma constante renovação. Dificilmente ele se satisfaz com os resultados, o que o leva a retrabalhar, em diversas seções a mesma tela. Também os pássaros trabalhados isoladamente, sofrem processo evolutivo próprio. Se, em 81, impõem-se pela força da sua presença sobre colagens de faixas de tecido lisos ou estampados retrabalhados em cores vibrantes; em 83, eles surgem mais gestuais, etéreos e isolados sobre as permanentes faixas de colagens de tecidos, sendo que pelo menos uma delas – em geral a mais vibrante -, é estampada. Em 85 – sobre um campo visual totalmente pintado – sem abrir mão das faixas/cores que constroem o espaço, os pássaros monumentalizan-se, como se fossem projetos de esculturas. Autobiográficos, a partir de 86, os pássaros chegam a expressar os sentimentos do autor, traçando seu prisma existencial; indo da angustia dos tempos difíceis vividos no país, ao espanto da era pós Collor e, à esperança por dias melhores.
Acrílica sobre tela 1985
A LIBERDADE DE CRIAR
                     A obra de Rogério Dias, uma das mais pessoais da arte paranaense Contemporânea, exige do expectador uma sintonia com a expressão plástica mais pura. Para seus companheiros da geração setenta, o nome Rogério Dias é como uma lenda que encarna os seus ideais de exuberância criativa, capaz de reagir contra a inércia imposta pelo AI5 e pela sociedade de consumo. Já por sua poética, tanto ele como Paulo Leminski são os verdadeiros inspiradores dos artistas paranaenses da geração Oitenta; com os quais tanto se identificam. Sem escolas, sem compromissos a não ser com a liberdade de criar, de ser e de inventar seus próprios códigos, Rogério dias é autor da “Oração ao Pássaro”, ícone e ideograma. Questionamento caboclo ao código visual europeu da perspectiva; da ilusão do real fotográfico. O triunfo do símbolo, da cor/emoção, da intuição, do bidimensional. Narração em registro reverência/referência.

Ave Rogério Dias, artistas das aves!
Adalice Araújo 
- Entrevista concedida à Adalice Araujo no atelier de Rogério Dias.

Curitiba 23 de Abril de 1994
























                             

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